Ana Gomes, sujeita de Francisco de Velosa

Quando Ana Gomes, minha antepassada materna casou no Faial, em 1607, era escrava de Francisco de Velosa.

A minha surpresa foi grande. Como escrevi neste artigo, em 2009, no Faial eu não tinha encontrado nenhum registo de casamento entre escravos. Esta situação mudou quando encontrei este assento desta minha avó e alarguei as minhas investigações no motor de busca do Arquivo Regional da Madeira, passando a pesquisar palavras como sujeito, cativo ou servo: tudo sinónimo de gente escravizada. Desde então, surgiram muitos outros registos em toda a Ilha, terei que atualizar os números, no entanto, no Faial aparecem apenas dois casamentos em que um dos contraentes seria escravo.

Trata-se do casamento que comecei por referir, entre Ana Gomes e António Álvares, meus avoengos, e de um outro, em 1772, entre Cristóvão Moniz, sujeito baço, e Maria Quitéria dos Reis.

Não consigo vislumbrar em que circunstâncias António Álvares acaba por casar com Ana Gomes. Não é homem forro nem escravo, é um homem de Porto da Cruz que por qualquer razão foi parar ao Faial, filho de João Alves "O Velho" e de Beatriz Dias.  

Este casal, João Alves e Beatriz Dias, teve várias filhas e filhos, muitos com geração, e trata-se de uma família antiga de Porto da Cruz (Os Dias de Porto da Cruz).

Um dos filhos do casal foi João Alves "O Moço" que protagoniza uma história engraçada. Este irmão de António Álvares, aquando do seu casamento com Mécia Rodrigues, foi-lhe imposto um impedimento por uma tal Maria Jerónima. Essa crónica fica para outra altura…

Havia uma série de questões jurídicas e práticas a ter em conta quando dois escravos casavam, que se tornavam mais pertinentes quando um dos cônjuges não era escravo e mais ainda quando a escrava era mulher, pois decorria da lei que os filhos de escrava seriam escravos.

Maria Dias, a filha de Ana Gomes e António Álvares casa em 1632, também no Faial, sem que exista alguma menção especial que possa indicar que mantém a condição da mãe. Quanto ao registo de batismo dos possíveis filhos do casal, onde se inclui Ana Dias de quem descendo, que poderiam ajudar a esclarecer este assunto, estarão irremediavelmente perdidos e por esse motivo não consegui perceber como se terá passado nesta família, em concreto. Que tipo de acordo se terá alcançado com o Francisco Velosa?

Mas afinal quem seria Ana Gomes? No assento de casamento diz-se que é filha de Maria Gomes “mulher da cidade”. Sem pai, como é normal nas filhas e filhos de escravos. São bem mais raros os casos de pessoas que nascem escravas e que tem direito a que conste, no seu registo, um pai e uma mãe, como acontece com ManuelNunes meu antepassado paterno, escravo.

Cidade só havia uma, o Funchal. Deixei assim o Livro de Casados do Faial e fui procurar saber mais sobre Ana Gomes no Livro de Baptizados da Sé do Funchal. Na Sé foram batizados quase todos os cativos que chegaram a Ilha da Madeira. Encontram-se espalhados profusamente pelos Paroquiais do seculo XVI. Quase todas as crianças sem pai indicado. No meu caso concreto seria necessário conseguir encontrar uma criança chamada Ana, nascida de uma Maria, escrava, em que o seu registo de batismo manifestasse algum indício de ligação com o apelido Gomes. Encontrei várias Anas filhas de Marias, escravas, servas ou cativas, para o período temporal adequado. De Ana em Ana, com muita paciência e alguma angústia (tanta criança sem pai, tantas pessoas escravizadas), cheguei à minha Ana.

Ana Gomes foi batizada a 27 de abril 1588, na Sé do Funchal, pelo cura João Fernandes. Nesse mesmo dia foram batizados também dois rapazes, António e Crisóstomo, os dois com filiação completa.

Diz então assim o registo, cuja imagem reproduzo abaixo: “Batizei eu João Fernandes, cura, a Ana filha de Maria serva de Simão Gomes. Foi seu padrinho Luis Gomes, filho de Manuel…”.


E está feita assim a ligação e, deste modo se percebe porque ela e a mãe têm o apelido Gomes. Provavelmente seria filha do Simão, do Luis ou do Manuel, todos Gomes. Sabe-se lá.

Se nasceu escrava de Simão Gomes como terá passado a sujeita de Francisco de Velosa? Em que circunstâncias? Talvez nunca se venha a saber.

Ana Gomes deixou a condição escrava provavelmente pouco depois de casar e, a partir daí deu origem a gerações de pessoas livres. O meu avô Manuel, nascido no Faial em 1899, pai da minha mãe é seu descendente direto.

Francisco de Velosa também casou no Faial e por lá terá continuado, com geração, e de geração em geração também desembocou no meu avô Manuel. Confluíram, no meu avô Manuel, Ana Gomes, a mulher escravizada, filha de escrava, e Francisco de Velosa, o esclavagista, filho d’algo.

E é disto que todos nós somos seguramente feitos, desta mistura de violência imposta sobre o ser humano, em particular sobre as mulheres, e de uma certa fidalguia provinciana.

 

Coisas giras que se pode ler para aprofundar este assunto, 433 anos depois do início da história que relato:

Os Negros em Portugal de José Ramos Tinhorão.

Escravos em Portugal de Arlindo M. Caldeira.

A historiografia sobre os escravos em Portugal de Jorge Fonseca.

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