As meninas


Um destes dias conversando com um meu parente afastado, o nosso antepassado comum viveu há coisa de 500 anos, ele dizia-me que tinha herdado muito do pai. Falou em milhares de livros! Terá herdado com certeza muitas outras coisas que não se conseguem contabilizar e muito mais determinantes do que essa imensa biblioteca, mas foi dos livros que falámos naquele dia. Herdou do pai o gosto pela cultura e pelos livros.

Eu também herdei um monte de livros e herdei um monte de genes que determinaram o meu percurso, os meus interesses e a maneira como vejo o mundo. Herdei comportamentos. Herdei pensamentos. Decidi não renunciar a esta herança.

Os nossos pais são os nossos primeiros deuses e a nossa família a nossa mitologia primeira. Os nossos pais, avós e bisavós são os únicos deuses que conhecemos pelo primeiro nome. Os que existiram antes de nós e que nos estão ligados influenciam-nos muito mais do que deixamos transparecer. Para mim é muito reconfortante.

Do meu pai herdei muita coisa.

Da minha mãe?
Vou-me recordando todos os dias daquilo que está presente e que sou eu. Herdei por exemplo o tom de voz. Ao telefone nem os mais próximos nos conseguem distinguir. Especialmente quando estou feliz. O meu pai desistiu de tentar. A minha irmã quando liga muitas vezes também não sabe se é a mana ou mãe. Há até uma amiga da minha mãe que consegue a proeza de falar comigo 10 ou 15 minutos sem se aperceber que sou eu.

Esta semelhança é tão engraçada que até nós próprias quando ouvimos gravações de mensagens uma da outra ficamos assim meio baralhadas, "mas eu agora estou a deixar mensagens a mim própria?". Já aconteceu.

E nos vídeos domésticos se a nossa voz se ouve sem imagem ficamos na dúvida quem disse o quê.
Já aconteceu também e é sempre hilariante.

:-)

Lembrei-me de isto hoje porque tive uma situação muito engraçada no trabalho com um casal de brasileiros. Muitas vezes estas pessoas que me surgem de paragens distantes funcionam como o meu espelho. Em meia hora abrem-me as vidas na esperança de que lhes possa dar "alguma luz", expressão tão querida dos brasileiros, mas que acabam quase sempre por me iluminar a mim.

Este cidadão depois de tudo acertado disse-me naquele tom caloroso:

-Foi um prazer conversar consigo. Muito bom mesmo. Gosto muito de ouvir você. Você tem uma voz agradável. A sério! Parece até assim voz de criança falando só que falando de assuntos sérios.

E acrescentou:

- Quando ligam para sua casa, e ouvem a sua voz, devem pedir para falar com o seu pai, não é mesmo?

Ri-me muito com isto. Porque foi engraçado e inesperado o comentário e porque é verdade que pedem para falar com os meus pais, algumas vezes, quando atendo o telefone.

Mas o que mais me divertiu foi recordar que quando a minha mãe atende o telefone também lhe pedem para chamar o pai.

A minha mãe tem 74 anos.

Dela eu herdei a voz de menina.

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