O Resgate

Há uma perplexidade que me acompanha desde os primeiros tempos das minhas pesquisas. O que leva um Joaquim, filho de Manuel, neto de José, de Francisco, de Luís, de António e de tantos outros nomes comuns ao longo dos séculos, a decidir, de repente, dar ao seu filho, na pia batismal, o nome de Josué? Um nome que sobressai no registo paroquial, destoando do padrão tradicional. O que faz com que, do nada, algumas pessoas resgatem nomes do Antigo Testamento, tipicamente judaicos? O que leva alguém a chamar ao filho Saúl, Elias, Levi ou mesmo Leão?

E não são casos isolados. Um Leão em Gomes Aires, em 1841. Um Levi em Garvão pela mesma altura. Um Josué em Ourique, em 1849. Um Benjamim, filho de Miguel. Estas escolhas parecem mais do que simples coincidências. Trata-se de uma constatação empírica que exigiria um estudo rigoroso em demografia histórica para perceber se há um verdadeiro fenómeno por trás destas escolhas, particularmente no período que parece situar-se em torno da década de 1850. Quem eram estas pessoas? O que lhes passou pela cabeça? António, pai de Leão. Martinho, avô de Josué. Por que decidiram recuperar nomes que haviam estado ausentes dos registos paroquiais durante séculos?

Mais intrigante ainda é o recorte geográfico do fenómeno. Estes batismos ocorrem no Alentejo dito profundo nos dias que correm—nas paróquias de Odemira, Ourique, algumas de Almodôvar e Santiago do Cacém. Mas não se verifica o mesmo nas freguesias da Ilha da Madeira, como Faial, Santana ou Porto da Cruz, que conheço bem. Porquê?

Se existe uma intencionalidade na escolha destes nomes, poderemos estar perante um movimento de resgate da memória dos antepassados. Sabemos que o século XIX trouxe esforços de recuperação da identidade judaica e marrana, mas muitas vezes sem clareza sobre os seus reais efeitos. Com o fim da Inquisição, houve, de forma muito residual, o regresso de judeus descendentes dos expulsos. Mas os que voltaram eram outros, e os que ficaram já não eram os mesmos.

"O século XIX foi então um tempo de regresso, de reencontro e de resgate. De regresso a uma nação da qual haviam sido escorraçados; de reencontro com aqueles que ficaram; de resgate, enfim, de uma memória que a Inquisição e seus sequazes quiseram apagar à viva força e a fogo vivo, de resgate de tantos e tantos homens e mulheres que mantiveram as crenças dos seus antepassados, mesmo se com deturpações rituais ou desvios doutrinários derivados da clandestinidade, do isolamento e da erosão do tempo.

Por vezes, muitos desses marranos – os descendentes dos sefarditas portugueses obrigados a converterem-se –, esses marranos, dizíamos, mal saberiam que o eram. Mas mantinham crenças e costumes antigos porque assim haviam aprendido à sorrelfa da boca de cautelosas avós." (Carvalho, Sérgio Luís de. Lisboa Judaica. pag.167)

Será que a notícia deste movimento de regresso chegou ao Alentejo, aos montes e herdades onde viviam os que ficaram para trás? Terá sido isso que os levou a resgatar os nomes primeiro—um grito de liberdade e afirmação, mas também um apelo aos que regressavam, uma espécie de SOS dirigido a quem pudesse ouvi-los? Um pedido mudo para que fossem também eles resgatados?

Só que esse resgate nunca chegou a acontecer. Ao contrário do que este autor deixa crer, esse resgate não se concretizou.

O século XIX foi um tempo de regresso, de reencontro e de rejeição, não de resgate. A identidade que a Inquisição tentou apagar talvez tenha sobrevivido oculta nas tradições familiares, mas o retorno que poderia ter dado continuidade a essa memória não aconteceu. Os marranos, muitas vezes sem plena consciência da sua origem, preservaram costumes e crenças judaicas transmitidas secretamente ao longo das gerações. Talvez a escolha destes nomes tenha sido uma manifestação tardia desse legado—não um regresso consciente ao judaísmo, mas um vestígio de uma memória que, mesmo difusa, insistia em reaparecer.

Mas que acabou por desaparecer. Em pouco tempo, os nomes tradicionais voltaram a dominar, a uniformização impôs-se novamente, e esse breve afloramento de nomes de sabor judaico foi esquecido.

Até hoje.


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